Todos pela Capoeira

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Capoeira Arte e Luta Brasileira

sábado, 19 de setembro de 2015

Capoeira baiana dá seu grito de liberdade contra a regulamentação e controle dos capoeiristas!

Paulo Magalhães (Sem Terra)

  O Painel do Senado promovido pela Senadora Lídice da Mata no dia 6 de dezembro de 2013 em Salvador se constituiu em um palco privilegiado para mais um grito de resistência da capoeira baiana, que já havia se pronunciado no dia 25 de outubro no Forte Santo Antônio. Tema? O projeto de lei que regulamenta a profissão de capoeirista e vem provocando polêmicas e protestos indignados por todo o país.

Na verdade, o debate se dá em torno de três versões distintas de um mesmo projeto. O Projeto de Lei 31/2009, do deputado Arnaldo Faria de Sá, abre esse debate. Trata-se de um projeto fraco e vago, com apenas dois artigos. Um reconhece a prática da capoeira como “profissão, na sua manifestação como dança, competição ou luta”, mas o outro diz respeito apenas ao atleta profissional, definido como “o capoeirista cuja atividade consista na participação em eventos públicos ou privados de capoeira mediante remuneração”. Ou seja, o projeto, apesar de vago e mal escrito, já deixa entrever do que trata essa articulação: uma institucionalização da capoeira através do segmento capoeira-esporte e seus “atletas profissionais”. O PL está aqui:http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/56450.pdf


  O PL 2858/2008, do deputado Carlos Zarattini (que foi/está sendo apensado ao primeiro), avança em detalhamento, e mostra claramente o ataque absurdo que está sendo tramado contra a capoeira. Primeiro ele reconhece a atividade de capoeirista, afirmando que “aplica-se a todas as modalidades em que a capoeira se manifesta, seja como esporte, luta, dança, cultura popular e música”. Depois escreve bobagem ao dizer que “ficam reconhecidos como Contramestre e Mestre os profissionais com dez anos ou mais na profissão”. Quer dizer que eu já era mestre e não sabia... Mas o golpe vem em seguida, ao afirmar que “ficam reconhecidas como profissão as atividades de capoeira nas modalidades luta e esporte”, e ao especificar o que é privativo do capoeirista profissional. Ou seja, apenas os atletas seriam profissionais da capoeira, e os demais, amadores. E somente o atleta poderia dar aulas em escolas, academias.... todos os outros capoeiristas seriam meros amadores. Todos os capoeiristas que não se identificam com o modelo capoeira esporte para competição seriam então excluídos e postos à margem do sistema, incluindo os mestres antigos, a capoeira angola, a capoeira de rua, a capoeira show e diversos setores das capoeiras regional e contemporânea, incluindo todos os capoeiristas que trabalham a capoeira numa perspectiva de educação. O PL pode ser acessado aqui:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=21591309922A10204270A2858401ADBB.node1?codteor=542368&filename=Avulso+-PL+2858/2008


  Mas o pior está por vir. A terceira versão deste projeto, elaborada por segmentos da capoeira contemporânea do sudeste e articulada pelo Sr. Jairo Júnior, do III Congresso Nacional Unitário de Capoeira, com apoio de setores da Fundação Palmares, é ainda mais nefasta e representa um verdadeiro tiro de misericórdia nas tradições e fundamentos da capoeira. Esse substitutivo do projeto de lei é tão absurdo que não tiveram coragem de protocolá-lo no Congresso Nacional nem disponibilizá-lo pela internet à comunidade da capoeira. Ele foi entregue nas mãos da Senadora Lídice da Mata, que prontamente o socializou com a capoeiragem baiana. Trata-se de uma reedição do projeto de lei do sistema CREF/CONFEF, que queria criar uma reserva de mercado para os profissionais de educação física, estabelecendo que só poderia ensinar capoeira quem tivesse o referido diploma. Mas desta vez, o diploma em questão não seria o de Educação Física, mas o certificado da CBC – Confederação Brasileira de Capoeira, ou outro órgão semelhante a ser criado pelo grupo do Sr. Jairo.


  O projeto já começa classificando a capoeira como “desporto de criação nacional” (ou seja, a capoeira angola, como manifestação cultural afro-brasileira, está excluída e só poderia ser praticada de forma não profissional, uma vez que nem é desporto nem é de criação nacional). Em seguida, divide a capoeira em prática desportiva formal (regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva) e prática desportiva não-formal. Ou seja, além de ser todo mundo atleta, desportista, só pratica a capoeira “formalmente” quem se submeter às regras e normas ditadas pelo “sistema de organização da capoeira”. Todos os outros são informais.


  A próxima parte do projeto é pior, uma vez que afirma que a capoeira pode ser organizada e praticada de modo profissional, e de modo não-profissional, e estabelece como obrigatório para registro da “Atividade do Profissional da Capoeira” a apresentação de diploma de conclusão do ensino médio e “atestado de capacitação fornecido pela entidade de administração da capoeira legalmente constituída e formalizada”. Ou seja, para trabalhar com capoeira, além de ter que passar obrigatoriamente pela escola (já excluindo os velhos mestres que aprenderam na universidade da vida) todos os capoeiristas teriam que fazer um curso com a CBC ou entidade semelhante, para serem reconhecidos como profissionais da capoeira! Toda a capoeira do Brasil seria controlada, regulada, normatizada e padronizada por uma pequena casta instalada em São Paulo, os novos capitães do mato, “donos da capoeira”! Os antigos mestres, assim como seus discípulos formados pela capoeira e reconhecidos pela comunidade, teriam que ir ao sudeste fazer cursos com os “donos da capoeira”, pagar mensalidades e se submeter ás suas regras e normas, padronizando a capoeira e extinguindo toda uma diversidade de estilos e linhagens que fazem ser tão rica essa herança ancestral.


  O projeto segue amarrando uma “Organização Nacional da Capoeira”, liderada por “entidades nacionais de administração da capoeira”. Essas entidades concentrariam repasses de recursos dos governos federal, estaduais e municipais, além de “recursos transferidos pelo Comitê Olímpico Brasileiro”, o pote de ouro almejado pelos atletas da capoeira, em um processo de articulação política que passa pelo Ministério dos Esportes (será coincidências que todos esses articuladores sejam do mesmo partido?). Quer dizer, se os recursos para a capoeira, distribuídos através de projetos e editais, já são poucos, o que aconteceria se todos os recursos fossem concentrados nas mãos de uma única entidade, controlada por uma panelinha?


A capoeira não tem dono. É livre, tem seus fundamentos herdados dos que nos antecederam, e uma lógica de organização própria. Sua organização se dá de dentro pra fora, de baixo pra cima, e foi contra a normatização do Estado que ela sempre lutou. Por isso a capoeira baiana dá o seu grito de resistência e liberdade. Outros estados vêm se posicionando, como Minas Gerais, que no dia 20/12 fez um “Berimbausaço” em plena Praça 7, no centro de Belo Horizonte. Que outros estados se incorporem a este debate e façam valer sua força!


Iê vamos'imbora, camaradas!!!

Paulo Magalhães, ou Sem Terra, é jornalista e mestre em ciências sociais, autor do livro “Jogo de Discursos: A disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana” (Salvador: EDUFBA, 2012).
Coordena o Coletivo Ginga de Angola (Escola de Dança  da UFBA), é membro do Coletivo Capoeira e Militância, do Fórum de Cultura da Bahia e do Colegiado Setorial de Culturas Populares do Estado da Bahia.